sábado, 14 de julho de 2012

EU “ADOTEI” UMA AVÓ

Quando minha mãe sugeriu que eu recebesse em casa aquela senhora, fiquei muito preocupada. “Só por uns dias”, insistia ela. “Coitada, está tão doente! Os médicos não lhe dão mais que seis meses de vida...”

Eu conhecia a Sra. T. apenas superficialmente, da igreja do nosso bairro. Era uma mulher bonita, de posses e muito querida por todos. Estava numa situação desesperadora, após ter sofrido um rude golpe: seu enteado morrera tragicamente e, em conseqüência, também seu marido, pai do rapaz que, ao saber da noticiam fora fulminado por um infarto. Tamanha dor a derrubara. Com onze perfurações de úlceras, submetera-se a uma delicada cirurgia. Agora os médicos a desenganavam. Machucada e com uma depressão terrível, fraca e dependente, a Sra. T. autorizara a venda da casa onde tinha sido tão feliz e não tinha para onde ir, pois seus poucos parentes distantes viviam no Sul.

Eu estava casada havia menos de um ano e grávida de oito meses. Como receber alguém como hóspede nessa situação, ainda mais sabendo-a acostumada a confortos que meu marido e eu, ambos professores, não poderíamos lhe proporcionar? Mas fui vencida pelos argumentos de minha mão. Cedi.

Ela chegou num domingo. Alquebrada, magrinha, humilde em sua dor, repetia que “não queria das trabalho” e que ficaria “só por uns tempos”, até resolver o que faria de sua vida, agora sem objetivos.

Uma semana mais tarde era seu aniversário. Faria 61 anos e, por isso, resolvemos fazer-lhe um almoço especial. Eu estava na cozinha com o marido, preparando o peixe, quando entrei em trabalho de parto. Às 12h35 nascia minha primeira filha, Maria Luiza. O almoço acabou não acontecendo. Voltando da maternidade para buscar nossa hóspede, meu marido profetizou: “Sra. T., seu presente de aniversário chegou!”

Curvada sobre o berço, ela olhava encantada minha pequenina. Tinha até receio de pegá-la, tão fraca se sentia. Viemos para casa. E ela fez o primeiro pedido: queria ir ao Banco, buscar suas jóias e dar “um banho de ouro” na menininha, que ela fosse rica quando crescesse, segundo uma tradicional crendice do Sul do Brasil. Cordões, medalhas, anéis e brincos, dentro da banheira, solenizaram aquele momento mágico. Depois dele a Sra. T. passou a alimentar-se cada vez melhor, para ter forças para carregar sua “netinha postiça”, acarinhá-la, levá-la para o banho de sol.

O que se seguiu, a partir daí, foi como um milagre. A mulher fraca foi se fortalecendo. Seu amor materno, latente, jamais experimentado em filhos que não gerou, extravasou-se por inteiro naquele bebê que lhe havia sido “presenteado” numa hora de aparente derrota.

Um ano depois, numa praia de Pernambuco, ela corria pelo coqueiral, levando Maria Luiza pela mão, quando homem parou ao seu lado, incrédulo... Era o cirurgião que a operara e lhe dera seis meses de vida. “Que milagre foi esse, mulher?” O que aconteceu?” Ele lhe perguntou. “Olha aqui o meu remédio”, explicou ela , orgulhosa, apontando para a menina, cheia de amor.

Vieram novas dores para ela. Um outro enteado morto num desastre de avião. Uma outra filha minha, como conforto. Um jovem, filho da antiga empregada, que ela ajudara a criar, foi assassinado. A terceira “netinha” em minha casa. “Para cada dos que Deus me deu você me trouxe o consolo de mais uma neta”, dizia.

Vivemos juntas catorze anos e meio. O ritual de amor diário era sempre comovedor. Preparar os uniformes das meninas, acondicionar o lanche, supervisionar as tarefas escolares, inventar brincadeiras, preparar refeições... Todas as crianças da rua a adoravam e a chamavam de “Vo”. Os jovens e adultos, igualmente. Os amigos, sem exceção, adoraram também aquela amiga linda, culta, serena, que aconselhava cada um e ria das piadas de todos.

No dia do aniversário dela, a cada ano, a dupla festa era formidável! Um bolo com motivos infantis e outro para a avozinha. Cantorias para as duas. Serenata para ela, depois do cansaço dos menores. E os festejos populares, então? Como criavam “alma” nas mãos dela! Milho assado nas fogueiras de São João, noite adentro. Presépios iluminados no Natal. Surpresas escondidas pela casa, na Páscoa. Ambrósia na compota para a noite de Ano Novo. Havaianas, ciganas, baianas para pular no Carnaval. Uma alegria em dar, organizar, envolver-se nos rituais tradicionais do nosso povo...

Nesses anos de convivência, vi adoecer e morrer minha mãe e minha sogra. Para ambas, nenhuma enfermeira teria sido mais amorosa. Em seus ombros abri muitas vezes o coração, desabando problemas pessoais ou profissionais. O mesmo fizeram parentes e amigos. Nossa afinidade se construiu assim, repleta dos risos infantis que nos cercavam. Jamais senti ciúmes. Jamais imaginei que ela quisesse o meu lugar, no coração das meninas ou em minha casa. Eu era a mãe. Havia o pai, os tios e havia a avozinha, doce como um favo de mel, contando histórias, embalando o sono, ajudando cada um.

Milhares de fotos testemunham essa “adoção” que, certamente, foi traçada num outro plano. Instantes aprisionados de um coridiano extremamente rico, gosto, inesquecível.

Quase quinze anos mais tarde ela se foi. Uma meningite hemorrágica a levou. E eu velei, por dez dias, junto ao seu leito de hospital, sentindo a imensa dor daquela perda irreparável. Doei suas roupas para os pobres que viviam por ali, esperando a esmola certa, sempre acompanhada de muito carinho. Encaminhei, por meio dos advogados, seus bens para os parentes herdeiros, distantes. Para minha família ficou o bem imaterial, guardado no coração. Ficaram os exemplos, o riso, a ternura compartilhada – a vida, enfim, plena e maravilhosamente vivida!

Já lá se vão muitos anos... Se decidi partilhar com vocês essa história é porque acredito que o coração “escolhe” os parentes que quer. E mais: quando a gente se dispõe a enfrentar uma situação nova, intrigante, talvez nem se dê conta daquilo que nos espera, nessa estrada que muitos chamam de “destino” mas que eu creio ser parte de um plano Superior, traçado para apontar os rumos de cada vida.

Era uma vez uma avozinha sem netos e sem razão para viver”... Bobagem. Os milagres acontecem, sim. Na minha vida, pelo menos, eles aconteceram porque ela, a “voinha” foi a luz que a iluminou!

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OBS:

Esse texto foi publicado na Revista Cláudia, seção “Minha história”, em julho de 1995. Republicá-lo aqui é uma homenagem aos 30 anos da partida dessa mulher excepcional, que mudou a minha vida e que se chamava Tosca Celli Barbieri, aqui fotografada em diversos momentos...

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